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Entrevista - Portal NeuroDivergente

  • Foto do escritor: Lucelmo Lacerda
    Lucelmo Lacerda
  • 13 de ago.
  • 5 min de leitura

Lucelmo Lacerda, professor universitário, historiador, psicopedagogo e pesquisador na Universidade da Carolina do Norte (EUA). É Doutor em Educação pela PUC-SP, com pós-doutoramento no departamento de psicologia da UFSCar e Mestre em História pela PUC-SP. Também é pesquisador nos campos de Autismo e Inclusão. Angariou milhares de seguidores nas redes sociais especialmente com seu trabalho de conscientização sobre o Transtorno do Espectro Autista e quadros assemelhados. Autor de “Crítica a Pseudociência em Educação Especial”


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Dr. Lucelmo, como o senhor avalia o cenário atual da inclusão de pessoas neurodivergentes no Brasil, especialmente no ambiente educacional e de trabalho?


Nesses dois ambientes, a situação ainda é muito difícil no Brasil. No campo educacional, conseguimos superar a barreira de entrada. Hoje, por exemplo, pessoas com deficiência têm a possibilidade de se matricular em escolas particulares, ainda que isso seja resultado de uma imposição legal. Mesmo assim, ainda há muitos casos de negativa de matrícula. Na rede pública, essa barreira inicial foi superada, mas outras permanecem: a da permanência, da participação e da aprendizagem, que ainda estão longe de serem garantidas.No mercado de trabalho, nem mesmo o acesso foi plenamente conquistado. Trata-se de um contexto muito mais complexo. Mesmo nas oportunidades públicas, há cotas para pessoas com deficiência, mas geralmente voltadas a um perfil específico: indivíduos com maior funcionalidade (como os de nível 1). Isso representa uma limitação bastante significativa.


Na sua visão, qual é a principal barreira que impede uma inclusão verdadeira: a estrutura, a formação dos profissionais ou o preconceito velado?


Há questões estruturais e de preconceito, sim, mas o principal problema está na ausência de um arranjo adequado entre todos esses fatores. Ou seja, mesmo que tenhamos profissionais disponíveis, qual é a diretriz de funcionamento da escola ou instituição? Sem um compromisso com práticas baseadas em evidências, dificilmente conseguiremos promover o desenvolvimento adequado, mesmo que esses profissionais sejam bem informados. Precisamos, primeiro, de diretrizes claras. A partir disso, faz sentido falar em formação, pois saberemos exatamente o que esperamos dos profissionais e poderemos identificar se há uma disparidade entre o que a ciência aponta como mais eficaz e o que está sendo oferecido na formação deles.


Qual o papel da saúde emocional no processo de inclusão? É possível falar de inclusão sem considerar o bem-estar psíquico do indivíduo?


O papel da saúde emocional é fundamental e não apenas para pessoas com deficiência, mas para todos. Temos dados robustos que mostram que questões socioemocionais têm mais impacto nos desfechos escolares do que o próprio QI, por exemplo. No caso de pessoas com deficiência, a vulnerabilidade psíquica costuma ser ainda maior. Isso pode ocorrer em decorrência da própria condição, de comorbidades frequentes ou das experiências de vida enfrentadas por essas pessoas.


O termo “neurodiversidade” ainda é pouco compreendido. Como o senhor explicaria de forma acessível o que ele significa e sua importância para a sociedade?


O termo realmente é pouco compreendido, inclusive dentro da própria comunidade. Ele foi criado por Judith Singer, na década de 1990, a partir de uma analogia com a biodiversidade. Ela afirmou que, assim como há uma diversidade de espécies no planeta, também há uma diversidade de funcionamentos cerebrais e neurológicos entre os seres humanos. Essa é a neurodiversidade: uma parte natural da existência humana. Com isso, precisamos considerar essa diversidade ao pensar em educação, mercado de trabalho, saúde e demais estruturas sociais, sempre com dignidade.


Como pais e educadores podem atuar de forma mais ativa e consciente no acolhimento de crianças neurodivergentes? Quais práticas o senhor recomenda?


É difícil dar uma resposta única, porque as práticas dependem da condição e do diagnóstico de cada criança. Mas, de forma geral, na educação, deveríamos adotar práticas baseadas em evidências, ou seja, métodos validados por pesquisa científica e não apenas ideias conceituais ou teóricas.Essas práticas devem ser sempre adaptadas à realidade do indivíduo e ao contexto. No caso dos pais, há dois pontos que considero essenciais. O primeiro é cuidar do aspecto emocional. Pesquisas mostram que pais que passam por treinamentos de mindfulness, por exemplo, desenvolvem estratégias emocionais importantes para lidar com os desafios. O segundo ponto é buscar conhecimento, tanto técnico quanto jurídico. Conhecer os direitos dos filhos e saber como defendê-los é crucial.


Há espaço para políticas públicas mais eficazes ou estamos ainda em um estágio muito inicial na prática da inclusão?


Há sim espaço para políticas públicas mais eficazes, mas, infelizmente, ainda estamos em um estágio muito inicial na prática da inclusão.Hoje, as políticas públicas no Brasil, em geral, estão mais ligadas a convicções pessoais dos gestores do que a evidências científicas. Claro, há problemas de recursos e de vontade política, mas também há muitos obstáculos técnicos que poderiam ser facilmente superados com boa gestão. Infelizmente, ainda não vemos essa mobilização de forma estruturada.


Que orientações o senhor daria a empresas que desejam se tornar mais inclusivas para neurodivergentes, especialmente em cargos que exigem performance e comunicação?


Eu daria duas sugestões. Primeiro: se você tem uma empresa, entendo que deseja lucro e está certo. Portanto, olhe para a inclusão de pessoas com deficiência a partir dessa lógica. Como incluir essas pessoas, cumprir a legislação (como a Lei de Cotas) e, ao mesmo tempo, gerar lucro? Não se trata de caridade. As pessoas com deficiência querem contribuir de verdade com o ambiente de trabalho. Segundo: identifique os perfis que façam sentido para sua empresa. Há muitos tipos de deficiência, e dentro de cada uma há perfis diversos. A maioria das pessoas com deficiência está desempregada, ou seja, há mão de obra disponível. Mas é preciso fazer um recrutamento competente, com quem entenda do assunto.


Pode compartilhar um exemplo inspirador, entre os muitos que acompanhou, de superação ou transformação através da inclusão bem aplicada?


Há muitos, mas um caso interessante é o de um programa em São Paulo, feito em parceria com o Hospital Sírio-Libanês, voltado a pessoas com deficiência com maior comprometimento. Em eventos científicos, por exemplo, há aquelas sacolas com materiais de divulgação (flyers, panfletos, brindes), e esse trabalho de montagem exige atenção, repetição e organização, tarefas que nenhuma máquina ou inteligência artificial faz com qualidade. Eles treinaram pessoas com deficiência para essa função e os resultados foram excelentes. Elas realizam o trabalho com excelência, recebem salário, ajudam suas famílias e têm orgulho do que fazem. Esse é um caso real de como pessoas com comprometimentos mais severos podem contribuir, sim, com produtividade, dignidade e geração de renda, beneficiando tanto a empresa quanto a sociedade.


Para encerrar: qual é a mensagem mais urgente que o senhor gostaria de deixar para os gestores públicos, educadores e líderes empresariais sobre inclusão e neurodiversidade?


Já existe muito conhecimento sendo produzido no mundo sobre inclusão. Ninguém precisa inventar a roda. Basta buscar essas evidências e adaptar à realidade brasileira. Recentemente, vi um estudo da China sobre o ensino de lavagem de carros para pessoas com deficiência intelectual. Foi feito a distância, com sucesso, um método simples, acessível e eficaz. Imagine termos centros de formação a distância, no Brasil, que pudessem oferecer esse tipo de treinamento prático para diferentes funções e profissões. É algo barato, viável e com enorme potencial de impacto social e econômico. O conhecimento está disponível. O que falta é vontade de aplicar.



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