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Outubro Rosa: o cuidado que começa na escuta

  • Foto do escritor: Michele Rodrigues
    Michele Rodrigues
  • 9 de out.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 10 de out.

O mês do Outubro Rosa convida à reflexão sobre a importância da prevenção e do diagnóstico precoce do câncer de mama. Tradicionalmente centradas em campanhas educativas e exames preventivos, essas ações têm se mostrado fundamentais para a redução da mortalidade. No entanto, ainda há um aspecto pouco debatido: a dimensão emocional e comunicacional envolvida no cuidado com mulheres neurodivergentes, aquelas que apresentam condições como Transtorno do Espectro Autista (TEA), Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), dislexia, altas habilidades/superdotação (AH/SD), entre outras diferenças neurológicas que afetam a percepção, a comunicação e o processamento sensorial.


Para nós mulheres neurodivergentes, o percurso preventivo pode se tornar uma experiência de ansiedade, desconforto e, muitas vezes, de retraimento diante do sistema de saúde. Assim, pensar um Outubro Rosa mais inclusivo implica ampliar o conceito de prevenção: não apenas a realização do exame, mas o acolhimento emocional, a comunicação acessível e o respeito ao tempo e à sensorialidade de cada paciente.


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A neurodivergência e o corpo como território sensorial


A neurociência contemporânea compreende que o cérebro humano processa estímulos e emoções de maneira singular. Nas pessoas neurodivergentes, esse processamento pode envolver hipersensibilidade a sons, luzes, texturas e toques. Em ambientes clínicos, tais estímulos como o ruído de equipamentos, o contato físico inesperado, o cheiro de produtos de limpeza, a luminosidade intensa, podem gerar sobrecarga sensorial, provocando reações de fuga, fechamento emocional ou recusa ao exame.


Estudos demonstram que mulheres autistas, por exemplo, tendem a relatar experiências médicas traumáticas com maior frequência, o que resulta em menor adesão a consultas preventivas e piores desfechos em saúde. De modo semelhante, pessoas com TDAH podem apresentar impulsividade, esquecimento de agendamentos e dificuldade em lidar com longos tempos de espera. Já mulheres com dislexia ou outros transtornos de aprendizagem enfrentam desafios na compreensão de instruções verbais ou escritas excessivamente técnicas.


Esses fatores não se explicam pela “resistência” ou “desinteresse” da paciente, mas por diferenças reais no modo como o cérebro interpreta o mundo. Portanto, reconhecer a neurodiversidade é o primeiro passo para oferecer um cuidado mais humano, eficaz e cientificamente responsável.


Superdotação e sensibilidade ampliada: o outro lado da neurodiversidade


A experiência das mulheres superdotadas raramente é considerada nas discussões sobre saúde preventiva, embora pertença igualmente ao espectro da neurodiversidade. A superdotação não se resume a um alto quociente intelectual, mas envolve um perfil neurocognitivo diferenciado, marcado por hiperexcitabilidade emocional, sensorial e imaginativa.


Costumamos apresentar intensa consciência corporal e emocional, além de pensamento acelerado e autocrítico. Em contextos médicos, tais características podem resultar em hiperinterpretação de sintomas, ansiedade antecipatória, ou dificuldade em confiar na equipe de saúde, especialmente quando percebem inconsistências ou ausência de empatia no atendimento.


O paradoxo é evidente: quanto mais informada e cognitivamente ativa é a paciente, maior pode ser sua vulnerabilidade emocional diante de experiências invasivas, frias ou impessoais. Para mim, mulher superdotada, o ambiente médico que ignora a dimensão subjetiva do cuidado pode ser interpretado como desrespeitoso, gerando retraimento e até evitação de consultas.


Por isso, médicos e psicólogos que atuam na linha de frente do Outubro Rosa precisam compreender que o cuidado não é apenas técnico, mas também relacional. O diálogo empático, a escuta autêntica e o reconhecimento da subjetividade são instrumentos terapêuticos tão relevantes quanto os protocolos clínicos.


A prevenção que começa na comunicação


A relação médico-paciente e a aliança terapêutica são pilares da prática clínica e psicológica. Entretanto, essa relação depende de uma variável central: a comunicação. Em um contexto neurodivergente, a linguagem precisa ser acessível, clara e estruturada. Algumas estratégias comunicacionais sugeridas por estudos em saúde inclusiva incluem:


·         Antecipar o que será feito: explicar cada etapa do exame antes de iniciá-lo, evitando surpresas sensoriais;

·         Utilizar linguagem concreta: evitar metáforas, jargões técnicos ou expressões ambíguas;

·         Oferecer previsibilidade: indicar o tempo estimado de espera e de duração do procedimento;

·         Respeitar o tempo emocional da paciente: permitir pausas, validar sentimentos de medo e desconforto;

·         Manter contato visual apenas quando apropriado: algumas pessoas autistas interpretam o olhar direto como invasivo.


A comunicação assertiva e empática reduz a ansiedade antecipatória, promove segurança emocional e fortalece a adesão à prevenção. Nesse sentido, o Outubro Rosa torna-se também uma oportunidade de educação em saúde emocional para profissionais e pacientes.


Ambiente físico e sobrecarga sensorial


Além da linguagem, o ambiente clínico exerce papel crucial. Pesquisas em neurociência sensorial indicam que estímulos simultâneos e intensos podem desencadear respostas fisiológicas de estresse em indivíduos neurodivergentes. Por isso, recomenda-se que os serviços de saúde considerem ajustes simples, mas eficazes:


·         Reduzir ruídos e luminosidade excessiva;

·         Evitar o uso de perfumes fortes ou produtos de limpeza com odor marcante;

·         Disponibilizar salas de espera mais calmas e com sinalização visual clara;

·         Oferecer, sempre que possível, a presença de um acompanhante de confiança.


Essas adaptações são parte dos chamados protocolos sensorialmente seguros, que não apenas promovem inclusão, mas também aumentam a probabilidade de detecção precoce de doenças, já que reduzem a evasão e o adiamento de exames.


O papel do psicólogo e do médico no cuidado humanizado


A atenção integral à saúde da mulher requer o diálogo entre medicina e psicologia. O profissional médico precisa compreender que o exame físico, para algumas pacientes, é uma experiência emocionalmente invasiva. O psicólogo, por sua vez, pode atuar na psicoeducação, no manejo da ansiedade e na mediação comunicacional, contribuindo para que a paciente compreenda a importância da prevenção sem sentir-se violentada em sua sensorialidade ou autonomia.


Modelos contemporâneos de atenção psicossocial, como o Cuidado Centrado na Pessoa, enfatizam a importância de considerar o sujeito em sua totalidade — biológica, emocional, social e neurológica. Essa abordagem é ainda mais necessária quando o objetivo é salvar vidas por meio da prevenção.


Prevenção é também construção de confiança


A confiança é o ponto de partida de qualquer prática em saúde. Ela se constrói no olhar atento, na escuta ativa e na comunicação respeitosa. Mulheres neurodivergentes frequentemente relatam experiências anteriores de incompreensão, infantilização ou desvalorização de seus relatos de dor, fenômeno conhecido como gaslighting médico.


Desconstruir essa lógica exige que profissionais reconheçam seus próprios vieses e busquem formação continuada em comunicação inclusiva e competência neurodivergente. A prevenção, nesse contexto, deixa de ser apenas um ato técnico e torna-se um encontro humano, em que o cuidado se expressa pela presença genuína e pela sensibilidade ética.


O verdadeiro sentido do Outubro Rosa está em promover vida, e vida com dignidade. Para isso, é urgente que as campanhas de prevenção incorporem o conceito de acessibilidade emocional e sensorial, reconhecendo que cada cérebro percebe o mundo de forma única.


Um Outubro Rosa mais inclusivo é aquele que entende que a prevenção começa na confiança, e que essa confiança nasce da forma como o profissional se comunica. Em última instância, escutar com empatia também salva vidas, especialmente quando se trata de cérebros intensos, sensíveis e profundamente humanos.


Falo também de um lugar vivido. Como mulher neurodivergente e superdotada, sei o quanto o corpo pode se tornar um campo de tensão entre razão e sensibilidade. Sei o que é compreender intelectualmente a necessidade da prevenção, mas sentir o coração disparar diante da ausência de acolhimento, do toque não anunciado, da palavra apressada. Sei, sobretudo, que o cuidado verdadeiro nasce quando o outro se dispõe a compreender não apenas o corpo que examina, mas o universo que o habita. Por isso, quando afirmo que a escuta salva vidas, falo com a convicção de quem já precisou ser escutada para, enfim, se permitir cuidar.


Referências

Dabrowski, K. (1972). Psychoneurosis Is Not an Illness: Neuroses and Psychoneuroses from the Perspective of Positive Disintegration. Gryf Publications.

Khan, K., Tariq, N. ul S., & Majeed, S. (2024). Psychological Impact of Medical Gaslighting on Women: A Systematic Review. Journal of Professional & Applied Psychology, 5(1), 110–125. https://doi.org/10.52053/jpap.v5i1.249 

Robertson, C. E., & Baron-Cohen, S. (2017). Sensory perception in autism. Nature Reviews Neuroscience, 18(11), 671–684. https://doi.org/10.1038/nrn.2017.112 

Silverman, L. (2012). Giftedness 101. Springer Publishing Company.


Dra. Michele Aparecida Cerqueira Rodrigues

Neuropsicopedagoga e Psicanalista Infantil.

Diretora do Departamento de Ensino em Saúde da Unilogos e professora na UniPaulistana e UNiBTA.

Membro da Mensa.

Instagram: @educacaoemterapia

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